Pacifismo e progresso.

Manchester Evening News, 14 de fevereiro de 1946.

“Pacifismo” é uma palavra vaga, pois costuma ser entendida coo uma expressão apenas negativa, ou seja, uma recusa a realizar o serviço militar ou uma rejeição da guerra como instrumento político.

Em si mesmo, isso não acarreta nenhuma implicação política definida, nem há um acordo geral quanto às atividades que um resistente à guerra deva aceitar ou recusar.

A maioria dos objetores de consciência simplesmente não está disposta a tirar a vida de pessoas, mas não se nega a cumprir uma tarefa alternativa, como o trabalho agrícola, no qual sua contribuição para o esforço de guerra é indireta, em vez de direta.

Por outro lado, os resistentes à guerras realmente intransigentes, que se recusam a executar qualquer forma de serviço militar compulsório e estão dispostos a encarar a perseguição em nome de suas crenças, são pessoas que não tem objeção teórica à violência mas são apenas oponentes do governo que porventura está travando uma guerra.

Desse modo, houve muitos socialistas que se opuseram à guerra de 1914-8, mas que apoiaram a de 1939-45 e, levando-se em conta suas premissas, não havia incoerência nisso.

A teoria toda do pacifismo, se supormos que significa renuncia total à violência, está aberta a objeções muito serias. É obvio que qualquer governo que não esteja disposto a usar a força ficará à mercê de outro governo, ou até mesmo de um individuo que seja menos escrupuloso, de tal modo que a recusa de usar a força tende simplesmente a tornar a vida civilizada.

Porém há pessoas que podem ser descritas como pacifistas que são inteligentes o bastante para admitir isso e que, ainda assim tem uma resposta. E embora existam diferenças de opnião entre elas, essa resposta é mais ou menos a seguinte.

É claro que a civilização depende agora da força. Depende não somente de canhões e aviões bombardeiros, mas também de prisões, campos de concentração e do cassetete da policia. E é bem verdade que, se as pessoas pacificas se recusam a se defender, o efeito imediato é dar mais poder a gangsteres como Hitler e Mussolini. Mas também é verdade que o uso da força torna impossível o verdadeiro progresso. A sociedade boa é aquele em que os seres humanos são iguais e em que cooperam uns com os outros de bom grado e não por medo ou compulsão econômica.

Esse é o objetivo que buscam socialistas, comunistas e anarquistas, cada um a sua maneira. Obviamente ele não pode ser alcançado num instante, mas aceitar a guerra como instrumento é se afastar dele.
A guerra e a preparação para a guerra tornam necessário o Estado moderno centralizado, que destrói a liberdade e perpetua as desigualdades. Alem disso,toda guerra gera novas guerras. Mesmo que a vida humana seja totalmente varrida do mapa-e este é um desdobramento bastante provável, tendo em vista a capacidade de destruição das armas atuais-, não pode haver avanço genuíno enquanto esse processo continuar.

É provável que ocorra uma degeneração, pois a tendência é que cada nova guerra seja mais brutal e degradante do que a anterior. Em um momento ou outro, o ciclo precisa ser rompido. Até mesmo ao custo de aceitar a derrota e a dominação estrangeira, devemos começar a agir pacificamente e nos recusarmos a pagar o mal com o mal.

No inicio, o resultado provável disso será o fortalecimento do mal, mas esse é o preço que temos que pagar pela historia bárbara dos últimos quatrocentos anos.  Ainda que seja necessário lutar contra a opressão, devemos fazê-lo por meios não violentos. O primeiro passo em direção à sanidade é romper com o ciclo de violência.

Entre os escritores que podemser, em termos gerais, agrupados como pacifistas e que provavelmente aceitariam o que eu disse acima como declaração preliminar de suas concepções estão Aldous Huxley, John Middleton Murry, o falecido Max Plowman, o poeta e critico anarquista Herbert Read e vários escritores muito jovens, como Alex Comfort e D.S Savage.

Os dois pensadores com que todos esses escritores estão, em algum grau, em divida são Tolstoi e Gandhi. Mas poderíamos distinguir entre eles ao menos duas escolas de pensamento: O que está de fato em questão é a aceitação ou não do Estado e da civilização mecânica.

Em seus primeiros escritos pacifistas, como “fins e meios” Huxley enfatizou sobretudo a loucura destrutiva da guerra e exagerou um pouco no argumento que não se pode obter um resultado bom usando métodos maus.  Nos últimos tempos, parece que chegou a  conclusão de que a ação política é inerente má e que, a rigor, não é possível salvar uma sociedade- só indivíduos podem ser salvos e, mesmo assim, apenas por meio de exercícios religiososque a pessoa comum dificilmente pode executar.

Na verdade, isso significa perder as esperanças nas instituições humanas e aconselhar a desobediência ao Estado, embora Huxley tenha feito um pronunciamento político definitivo.  Middleton Murry chegou ao pacifismo pelo caminho do socialismo, e sua atitude em relação ao Estado é um pouco diferente: Não pede que seja simplesmente abolido e se dá conta de que a civilização da maquina não pode ser jogada no lixo, e não será jogada no lixo.

Em um livro recente, Adam and Eve, ele defende a ideia interessante, embora discutível, de que se quisermos manter a maquina, o pleno emprego é um objetivo que deve ser abandonado. Uma industria extremamente desenvolvida, se funcionar em tempo integral, produzirá superávit inutilizável de bens e levará à luta por mercados e à competição em armamentos cujo fim natural é a guerra.

O objetivo deve ser uma sociedade descentralizada, agrícola em vez de industrial, e que valorize muito mais o lazer do que o luxo. Uma sociedade assim, pensa  Murry, seria inerentemente pacifica e não incitaria ao ataque, mesmo com vizinhos agressivos.

Herbert Read, que como anarquista considera o Estado algo a ser repudiado em sua totalidade, curiosamente não é hostil à maquina. Ele pensa que o alto grau de desenvolvimento industrial é compatível com a ausência completa dos controles centrais. Alguns dos pacifistas mais jovens, como Comfort e Savage, não oferecem um programa para a sociedade como um todo, mas enfatizam  a necessidade de preservar a individualidade contra a invasão tanto do Estado, quanto dos partidos políticos.

Veremos que a verdadeira pergunta é se o pacifismo é compatível com a luta pelo conforto material. Em termos gerais o pensamento pacifista vai na direção de uma espécie de primitivismo. Se quisermos um padrão de vida alto, precisamos de uma sociedade industrial complexa, mas isso significa planejamento, organização e coerção- Em outras palavras, implica o Estado, com suas prisões, forças policiais e inevitáveis guerras. Os pacifistas mais extremados diriam que a própria existência do Estado é incompatível com a verdadeira paz.
Está claro que, se alguém pensa dessa maneira, é quase impossível imaginar uma regeneração completa e rápida da sociedade.  O ideal pacifista e anarquista só pode ser realizado aos poucos, se tanto.  Daí a ideia que assombra o pensamento anarquista há cem anos, de comunidades agrícolas autossuficientes, nas quais a sociedade não violenta e sem classes pode existir, por assim dizer, em pequenos retalhos.

Em diferentes momentos, comunidades assim existiram realmente em varias partes do mundo: Na Rússia e nos Estados Unidos do século XIX, na frança e na Alemanha no anteguerras e na Espanha, por um breve período durante a guerra civil.

Também na grã- Bretanha, pequenos grupos de objetores de consciência tentaram algo desse tipo em anos recentes. A ideia não é simplesmente escapar da sociedade, mas criar oásis espirituais como os mosteiros da Idade Media, a partir dos quais possa se difundir aos poucos uma nova atitude em relação à vida.

O problema dessas sociedades é que jamais são genuinamente independentes do mundo externo, e que só podem existir enquanto o Estado, que consideram seu inimigo, achar melhor tolerá-las. Num sentido mais amplo, a mesma critica se aplica ao movimento pacifista como um todo.

Ele só pode sobreviver onde exista algum grau de democracia; em muitas partes do mundo, jamais conseguiu existir, não havia movimento pacifista na Alemanha nazista, por exemplo.

A tendência do pacifismo, portanto, é sempre enfraquecer os governos e sistemas sociais que são mais favoráveis a ele. Não há duvida de que, durante os dez anos anteriores à guerra, a predominância de ideias pacifistas na Grã-Bretanha, na França e nos Estados Unidos estimulou a agressão fascista. E mesmo em seus sentimentos subjetivos, os pacifistas ingleses e americanos parecem mais hostis à democracia capitalista do que ao totalitarismo. Mas num sentido negativo, suas criticas foram uteis.

Elas enfatizaram com razão que a sociedade atual, mesmo quando os canhões estão calados, não é pacifica, e mantiveram viva a ideia- de algum modo esquecida desde a Revolução Russa- de que o objetivo do progresso é abolir o a autoridade do Estado e não fortalecê-la.

George Orwell. 

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