O Problema da Tomada de Poder

"Faça guerra contra as guerras. DESTRUA O PODER, não o povo" Crass


Iremos agora realizar um rastreio na história bíblica, com a intenção de mostrar (1) que o marxismo da “abolição de classes alcançada através da luta de classes” tem se mostrado como uma operação fútil, na qual a humanidade tem sido enganada o suficiente para tentar; e (2) que a transição feita na Anarquia pode fazer (e tem feito) o que o marxismo nunca poderia. Do (quase) começo ao (quase) fim, a Bíblia apresenta um retrato clássico (talvez o retrato clássico) da luta de classes diante da ausência de classes. Lembre-se que, no nosso atual contexto, “ausência de classes” é um sinônimo de “justiça”. As duas classes sobre as quais iremos falar foram, ao mesmo e único tempo, diferentes religiosa, étnica, cultural e socioeconomicamente – bem como sobre a base de “oprimidos” e “opressores”. Nesse contexto, os oprimidos são “os judeus” e os opressores “os gentios” (de diferentes variedades). Assim, os padrões do marxismo são óbvios.
* O PRIMEIRO ROUND é o êxodo do Egito, com os escravos hebreus enquanto classe oprimida, e os senhores egípcios no papel dos opressores gentios. Não há questionamentos acerca da justiça da causa da luta dos escravos hebreus por liberdade – como é o caso em todos os pontos a seguir. Nossa preocupação não é se qualquer revolução é justa, mas sim se qualquer estratégia marxista cumpre o prometido. Aparentemente, por terem os escravos hebreus começado virtualmente sem nenhum senso de identidade em comum, nesse caso parece ser a necessidade primária de consciência de classe um obstáculo maior. Atos 7:25 é bem específico, ao dizer que Moisés, ao matar um capataz egípcio, teve a pretensão de um sinal de revolta, e que o assunto não vingou porque os hebreus não tinham um senso de solidariedade de classes para entender qual era o papel deles aqui. Antes da próxima tentativa de Moisés funcionar, foi necessário um aumento na consciência de que “nós somos a classe escrava oprimida, o povo de Deus, e eles são o inimigo, o grupo opressor; e o que devemos fazer é nos unir e combatê-los”. O padrão é o de toda e qualquer luta de classes de sempre. Dentro do programa, novamente, a luta atual é interpretada como “guerra santa”, Deus posicionando-se por completo ao lado da classe oprimida contra a opressora – Deus não somente aprova a revolta, assim como ajuda e dá a vitória. Os hebreus vencem os egípcios, e essa ameaça gentílica é eliminada. O problema é que a vitória falha ao traduzir-se em qualquer coisa que possa ser chamada libertação, justiça ou ausência de classes. O que temos, ao invés disso, não são simplesmente as dificuldades do deserto, mas, mais importante, o caos espiritual desses homens livres, desejando nada mais do que voltar à escravidão no Egito e, também, às eras escuras do Antigo Testamento, descritas em Josué e em Juízes. Tudo o que o Êxodo fez foi preparar a próxima etapa da próxima luta de classes.
* O SEGUNDO ROUND apresenta o Israel oprimido contra os cananeus gentios (e uma reunião de outras tribos pagãs). Aparentemente está ao longo desta prolongada luta que a consciência de classe de “nós judeus contra eles gentios” foi marcada a ferro na psique de Israel, assim como seu senso de identidade fundamental. Agora, a “guerra santa” tornara-se uma realidade, e um conceito teológico explícito. Com a ajuda de Deus por meio dos reis Saul, Davi e chegando ao ápice no reino de Salomão, a guerra santa de Israel é vencida, e os gentios opressores saem de cena. O povo de Deus agora está no controle, não há nada que possa impedir a sociedade justa e sem classes pela qual eles estavam lutando. O que aconteceu então? Bem, acho que simplesmente para impedir o povo de se sentir perdido por não ter qualquer opressão da qual se queixar, rei Salomão voluntariamente deu um passo para a violação, cobrando impostos de matar, e até mesmo sujeitando seus amigos judeus à escravidão. Isso, é claro, levou à guerra civil e à queda do reino. E enquanto o pai Davi chutou os cananeus pela porta da frente, o filho Salomão deixou deslizar sorrateiramente a religião cananéia pela porta dos fundos com suas esposas pagãs e seus seguidores. O rei Acabe, você lembra, até mesmo casou com Jezebel e a ajudou a estabelecer o baalismo como religião do reino. O que, de acordo com a teoria marxista, deveria ter sido por direito o alcance de Israel de sua sociedade justa e sem classes, se transformou no período no qual os profetas mal conseguiam evitar a completa paganização da fé de Israel.
* O TERCEIRO ROUND é a dominação e opressão dos reinos israelitas por parte dos invasores gentios assírios. O povo de Deus não estava em sua melhor posição para combatê-lo. Israel, o reino do norte, se perdeu completamente, e o reino do sul, Judá, foi salvo por um milagre de Deus. Ainda que “salvo” é usado aqui, é claro, num sentido bastante limitado. Judá não conseguiu se utilizar de sua “salvação” para qualquer fim; simplesmente tornou-se um estado fantoche, assirianizado.
* O QUARTO ROUND dos “pobres de Deus” contra a opressão gentílica é a destruição de Jerusalém pela Babilônia. À primeira vista, esse pode parecer um fato do tipo no qual a classe oprimida perde tudo. Entretanto, na intervenção divina, o período do exílio leva a um “retorno à terra” no qual o Deutero-Isaías proclama como a melhor oportunidade de todas para ser o bom povo de Deus, uma amostra de que “toda carne deve enxergar junta”, trazendo até mesmo os gentios para dentro da única sociedade verdadeiramente justa e sem classes de Deus. Infelizmente, mesmo quando lhes foi dada a vitória na luta de classes, os libertos novamente estragaram a recompensa. A maravilhosa visão de Deutero-Isaías não veio (ao menos no tempo e na maneira que ele viu). Ao invés de trazer qualquer dos gentios à ausência de classes, no retorno à terra sob a liderança de Esdras e Neemias, a consciência de classe dos “piedosos judeus contra os malditos gentios” foi elevada ao alto grau da intolerância, exclusão e chauvinismo nacionalista. Os livros de Rute e Jonas provavelmente foram escritos como um protesto direto contra esse espírito – um espírito que talvez seja melhor exemplificado no édito de que os homens judeus devem abandonar e rejeitar suas esposas gentias. Aqui havia uma sociedade sem classes, no sentido de que a classe oprimida tomou por completo a idéia e excluiu qualquer presença de outras classes. Mas esse não é um bom exemplo de “ausência de classes”.
* O QUINTO ROUND é a revolta dos judeus macabeus contra os gentios helênicos, os selêucidas. É novamente um caso de revolta bem sucedida, com os resultados sendo nada mais que os novos “oprimidos” livres tornando-se a próxima geração de “opressores”.
* O SEXTO ROUND mostra os zelotes, os leais combatentes da liberdade do judaísmo, contra o Império Romano gentio. Essa revolta dos oprimidos foi sem dúvida a falha mais visível de
todas.
* O ÚLTIMO ROUND é o ataque sobre o problema de classes dos judeus/gentios realizada pelo único Jesus de Nazaré. Aqui – e somente aqui – pode ser dito que o resultado foi qualquer coisa remotamente semelhante à verdadeira ausência de classes. A respeito desse caso – e somente este caso – um apóstolo pôde declarar: “Não existem judeus nem gentios,... pois vocês são todos um em Cristo Jesus.”
“Ah, então a estratégia marxista funcionou e irá funcionar... se ela tomar Jesus como seu patrocinador?” – é o que muitos teólogos da libertação parecem estar dizendo.
Não, não, não, não! O sucesso de Jesus vem de algo além do método político da teoria marxista. Vem do caminho pela liberdade.O caminho da Anarquia

Anarquia Cristã - Vernard Eller (1987)

ver também "O Problema do Classismo"
http://pseudonimoantifascista.blogspot.com.br/2012/05/o-problema-do-classismo.html

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