O Problema do Classismo

"Classe, classe, classe, sempre o mesmo papo de merda, classe média, classe trabalhadora, eu não me importo. Pretos ou brancos, punks ou skins, não há certo ou errado! Nós todos somos apenas seres humanos, alguns de nós podres, alguns de nós bons. Você pode se encher de suas falsas divisões porque juntos eu sei o que nós poderíamos burlar o sistema, quebrar suas regras. Não tenho classe, eu não sou um tolo. Burlar o sistema, acabar com seus direitos. Não tenho religião porque eu sei que há mais. Burlar o sistema, acabar com seu jogo. Não tenho cor, somos todos iguais. Gente, gente, não de classe, cor ou credo. Não destruam o povo, destruam o seu poder e sua ganância"

Primeiro, enquanto pensamos sobre “classes” e “ausência de classes”, é preciso manter a consciência do grande alcance das distinções que podem estar envolvidas. Nos dias atuais, as pessoas estão agrupadas não somente por funções socioeconômicas, mas também por gênero, idade, identidades raciais e étnicas, nível educacional, linguagem, hábitos de votação, hábitos de compra e preferências religiosas, para citar alguns. Temos distinções de classe o suficiente para cortar a sociedade na maneira que quisermos.
Não conheço o suficiente para falar com autoridade, mas minha impressão é de que o marxismo foi a primeira filosofia popular a basear toda a sua compreensão de história social sobre as premissas da distinção de classes, consciência de classes e luta de classes – tudo, é claro, dedicado ao objetivo de uma sociedade sem classes. Para essa dimensão, assim como todo o pensamento social moderno, cristão e secular, é marxista: “distinção de classes” (e o conflito que ela envolve) não é apenas o único fato básico sobre a sociedade, mas também sua esperança, seu meio de salvação, o instrumento essencial para levar a sociedade ao seu objetivo de não existirem mais classes.(A seguir, é isso que eu quero dizer por “marxismo”. É uma maneira curta para dizer “qualquer filosofia que defina progresso social em termos de luta de classes diante da ausência de classes”. Meu uso de palavras não tem por intenção trocar sentidos, é totalmente descritiva e de maneira alguma pejorativa). Porém, tais “marxismos” – até mesmo sendo sinceramente dedicados à ausência de classes – não vêem outra possibilidade de sair dessa a não ser ao dar uma volta de 180 graus em outra direção. A abolição das classes só pode ser alcançada primeiramente localizando a diferença entre elas, o que é a raiz do problema. A “classe oprimida” e a “opressora” devem ser apontadas e publicamente identificadas. Feito isso, a consciência de classe dos oprimidos deve ser elevada – o que, é claro, inevitavelmente leva ao aumento da consciência de classe da oposição também. Uma polarização deliberada está ganhando espaço de tal forma para que a classe oprimida possa consolidar o seu poder (“solidariedade” é uma boa palavra, “solidariedade ideológica”) – isto para se preparar para a luta, a guerrilha, a qual entende-se que culminará na abolição das classes. Obviamente, a ação serve para exacerbar a grande distinção de classes a ser eliminada – mas não há outro caminho. A “classe oprimida, porém correta”, deve ganhar forças sobre a “classe opressora e perversa”, para então substituí-la, destruí-la, dominá-la, absorvê-la ou convertê-la, para então deixar tudo como único, e portanto, a classe “sem classes”. A solidificação e polarização ideológica da distinção de classes, com a anexação intensificada da classe, é o único caminho para a abolição das classes.
Identificada, essa teoria marxista apresenta alguns problemas: entrar no jogo do antagonismo de classes pelo interesse da abolição de classes? Mas eu não sei se tem alguma solução melhor (na verdade, eu sei; mas quero guardar isso por um momento). Na prática comum, é claro, o negócio acontece de acordo com o programa, através do apontamento da diferença entre as classes, o aumento da consciência, a construção da solidariedade ideológica, e a matiz e o choro da luta de classes – somente para alcançar o passo final da abolição de classes. Por alguma razão, nesse ponto, tudo o que pode acontecer de errado, invariavelmente acontece. Assim, com a União Soviética do proto-marxismo, os camaradas da classe trabalhadora oprimida alcançaram sua solidariedade, venceram sua revolução, e até mesmo estabeleceram uma burocracia que foi seu instrumento para a criação da sua sociedade sem classes. Porém, ao invés de uma sociedade operária sem classes se tornar a ordem do dia, observe bem, a burocracia sozinha introduziu uma nova distinção de classes – fazendo isso sozinha, tornando-se totalitária sobre tudo. Assim como veio; assim se foi. Porém, como sempre, damos ao marxismo outra chance – pois o que mais temos? Se a distinção de classes é o que nos é “dado”, a única entidade que temos para trabalhar; e se o conflito inerente entre as classes é o que devemos derrotar – então além da luta de classes, o que mais pode existir? Todos os movimentos de libertação atuais mostram isso. Vou usar agora um deles como ilustração para todos. O objetivo alto e claro do movimento feminista é criar uma sociedade na qual as distinções sociais entre homens e mulheres sejam reduzidos a adiaphora, questões sem conseqüências. Não só as sugestões de desigualdade, mas mesmo as marcas que distinguem ambos devem ser minimizadas. Uma verdadeira abolição de classes deve transparecer. Porém a abolição de classes não pode acontecer pelo rebaixamento direto das diferenças; o poder da classe opressora deve primeiramente ser quebrado. Não, os passos imediatos devem apontar diretamente para longe do último objetivo que eles deveriam servir. Portanto: “Sim, os dois gêneros devem ser tratados sem distinção”. Então, desde tempos imemoriais temos uma língua inglesa que nos permite falar sem deixar pista alguma de qual dos dois gêneros humanos estão envolvidos, que não existe nem mesmo uma distinção conhecida como “sexo”. No entanto, esse modo dificilmente serve para o aumento de consciência de classe por parte das mulheres. Portanto, a regra agora é falar (com o dobro de pronomes e similares), para que essa diferença de gêneros fique sempre proeminente, para que o uso da terminologia de gênero seja preferencial àquela que não faça a distinção, tomando o cuidado de especificar tanto mulheres quanto homens. A gramática feminista é designada para servir à conscientização de gênero, não à abolição de classes da ignorância de gênero. Sendo assim: “Sim, o objetivo é que a diferença de gênero desapareça”. Entretanto, no caminho para esse objetivo, a distinção da classe feminina é necessária. Sim, até mesmo essa comunhão em comum de mulheres e homens deve ser negada – pelo objetivo final da abolição de classes! Nesse contexto: “Sim, procuramos pelo dia em que a diferença entre mulheres e homens serão vistas como insignificantes, se não inexistentes”. No entanto, por causa da solidariedade ideológica necessária para nos trazer até aqui, a encontramos pronta para posicionar uma distinção moral absoluta entre os sexos – ou seja, de que são os homens que causam guerras e que, se lhes derem uma chance, mulheres poderiam criar a paz.
Por favor compreendam bem quando eu digo que não estou aumentando essas ambigüidades e contradições como se fossem idiotices ou coisas sem sentido. Não, sob a preposição de que a luta de classes é o único caminho para a abolição de classes, essas estratégias são óbvias, apropriadas e necessárias.
Numa sinceridade na qual não cabem dúvidas, as feministas alegam que o seu interesse não é apenas se libertar, mas também libertar os homens. Ainda que isso deva ser reconhecido como o começo de toda linha revolucionária de toda luta de classes já montada. Entretanto, a questão é se a verdadeira abolição de classes pode ser alcançada através de uma classe que receba o poder de ditar os termos dessa abolição. Mais ainda, isso pode ser chamado de “libertação” para que outras pessoas tomem isso sobre si mesmas para libertar você, de acordo com a idéia delas de o que a nossa libertação deve ser? Me ocorre que “libertação” é um termo que cada pessoa deve definir por si mesma. Mas se “distinção de classes” e “luta de classes” são nossos meios escolhidos, é possível que a contradição um dia seja vencida? – que “abolição de classes” possa significar algo mais que “somos todos de uma só classe agora, porque a nossa é essa”; ou “libertação” significa algo mais que “você agora está livre, pois estamos em posição de lhe dizer que você está”?
Não usamos o termo aqui, porém deve ser claro que o que estamos chamando de “marxismo” é uma forma particular de “fé-arquia”. É a fé de que a luta entre as arquias chamadas de “classes” pode ser montada humanamente para resultar na salvação social chamada “sociedade sem classes”.
Vernard Eller (Anarquia Cristã pag 61-64)

ver também "não-arquia e fé-arquia"
http://pseudonimoantifascista.blogspot.com.br/2012/05/anarquia-anti-arquia-ou-nao-arquia.html

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